Crítica | Pecadores é o filme mais ousado e completo de Ryan Coogler — e também o mais pessoal
Em Pecadores, Ryan Coogler mistura blues, racismo e horror gótico no melhor filme de sua carreira. Leia a crítica completa.
Publicado em 25 de Abril de 2025, às 07h53
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Poucos diretores da nova geração hollywoodiana conseguiram se equilibrar com tanta desenvoltura entre o mainstream e o autoral quanto Ryan Coogler.
Em Pecadores, seu retorno ao cinema intimista desde Fruitvale Station, o cineasta assina uma obra vibrante, profundamente enraizada em sua herança cultural. Aliás, não apenas confirma seu talento, mas o eleva a um novo patamar de maturidade artística.
Ambientado no Mississipi de 1932, Pecadores reconstrói um sul gótico, sujo, sensual e místico, onde o blues pulsa como linguagem espiritual e sobrevivência. A música, aliás, não é apenas trilha ou ambientação: é veículo narrativo, catártico e político.
Como um rito, ela conecta os personagens aos seus ancestrais e aos dilemas do presente. Coogler faz disso uma experiência sensorial, atravessada por lirismo e dor. A trilha de Ludwig Göransson amplifica esse espírito, alternando entre o êxtase do boogie-woogie e o lamento do slow blues com maestria.
A história acompanha os gêmeos Smoke e Stack Moore (Michael B. Jordan ), dois ex-criminosos que retornam à cidade natal para abrir uma casa de shows destinada à população negra. O lugar é um refúgio da segregação e do racismo estruturado no Sul dos EUA.
Junto ao primo Sammie (Miles Caton) e ao veterano Delta Slim (Delroy Lindo), eles constroem um espaço de resistência, prazer e memória. Mas esse sonho se contamina com a chegada do misterioso vampiro Remmick (Jack O’Connell), cuja presença simbólica funciona como alegoria poderosa sobre a apropriação cultural e a destruição da arte negra.
Terror, crítica social e identidade: um filme em camadas
Coogler, como um artesão minucioso, funde o horror sobrenatural com as feridas reais da América negra. A escolha de usar o vampirismo como metáfora é certeira: Remmick, um irlandês que canta folk, encarna a figura do colonizador moderno, que não apenas suga o sangue — mas a alma — da criação negra. Ele não mata por fome, mas por controle. Seu alvo não é apenas o corpo, mas a cultura.
O longa se estrutura quase como dois filmes: o primeiro, uma crônica social embebida de música, desejo e dor; o segundo, uma fábula de terror e sobrevivência. Essa divisão pode causar estranhamento, mas o diretor reconcilia os elementos com habilidade, entregando um final que resgata a unidade temática da obra.
O “pecado”, afinal, está em todas as camadas: no crime, na música, no amor, na fé e na tentativa de escapar de um destino imposto por estruturas que esgotam e exploram corpos pretos há séculos.
Atuações e estética: a potência do detalhe
Michael B. Jordan entrega o trabalho mais complexo da carreira. Ao interpretar dois irmãos com personalidades opostas — Stack, impulsivo e boêmio; Smoke, calculista e introspectivo.
O ator utiliza nuances corporais e vocais para criar uma dualidade rica. O figurino reforça essa distinção, assim como a construção narrativa, que coloca os irmãos em lados simbólicos do embate: raízes versus assimilação, arte versus capital, alma versus sobrevivência.
Hailee Steinfeld e Wunmi Mosaku também brilham, não como meras figuras românticas, mas como peças fundamentais na construção das trajetórias masculinas — uma relação que evoca tanto ternura quanto melancolia. Já Jack O’Connell entrega uma performance contida e ameaçadora, que encarna com perfeição a força parasitária do imperialismo cultural.
A direção de arte e a fotografia evocam o calor abafado do Sul com maestria. Há algo de febril na mise-en-scène: um mundo onde o suor, a música e o sangue se misturam com a poeira das plantações e os sussurros dos ancestrais.
Conclusão: um acerto de contas com a história — e consigo mesmo
Pecadores não é só o filme mais autoral de Ryan Coogler: é o mais corajoso. Ao transformar memórias familiares e questões raciais em uma ópera gótica sobre identidade e resistência, o diretor afirma seu domínio absoluto da linguagem cinematográfica. O que poderia ser apenas mais um filme de terror estilizado revela-se uma poderosa meditação sobre os meios pelos quais um povo tenta se salvar — seja pela fé, pela arte ou pelo crime.