O que Lilo & Stitch pode ensinar sobre afeto, trauma e pertencimento
Descubra o que o filme Lilo & Stitch ensina sobre trauma, afeto e pertencimento, com análises da psicologia, filosofia e psicanálise.
Publicado em 28 de Maio de 2025, às 07h00
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Para quem enxerga Lilo & Stitch apenas como mais uma animação fofa da Disney, talvez valha a pena olhar novamente com mais atenção. A história da menina havaiana que adota um “cachorro” alienígena revela muito sobre como lidamos com perdas, traumas e laços afetivos. Especialmente em contextos de dor e reconstrução.
E não é só impressão. Psicólogos, filósofos e psicanalistas reconhecem o valor simbólico desse tipo de narrativa.
Obras como essa dialogam com arquétipos universais e sentimentos atemporais, oferecendo às crianças ferramentas emocionais de compreensão do mundo. Aos adultos, um espelho muitas vezes incômodo, mas necessário.
O trauma e o luto infantil sob uma ótica sensível
Logo nos primeiros minutos, Lilo & Stitch nos apresenta a Lilo e Nani, duas irmãs que tentam sobreviver emocionalmente após perderem os pais. Nani assume a guarda da caçula em um cenário de vulnerabilidade, tensão e risco constante de separação.
De acordo com a psicóloga e especialista em desenvolvimento infantil Elza Dias (USP), histórias que abordam perdas e reestruturação familiar ajudam crianças a dar nome e forma a emoções complexas.
“A morte, a ausência e o abandono são temas difíceis de abordar diretamente com crianças, mas quando aparecem de forma simbólica, como em Lilo & Stitch, promovem identificação e abertura emocional”, afirma. (PACHECO, Elza Dias. A linguagem televisiva e o imaginário infantil. Comunicação & Educação, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 43-48, 1995.)
Pertencimento: o que é uma família, afinal?
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No cerne da trama, surge a frase que virou símbolo do filme: “Ohana significa família. Família quer dizer nunca abandonar ou esquecer.” Essa noção vai de encontro ao que o filósofo francês Gilles Deleuze chama de “linhas de fuga”, formas alternativas de construção de subjetividades e laços sociais fora das normas estabelecidas.
Para Deleuze, uma família não precisa seguir o modelo tradicional para ser legítima. No filme, Stitch, uma criatura criada para destruir, encontra seu lugar não pelo que foi projetado para ser, mas pela maneira como escolheu se conectar com os outros. Lilo, por sua vez, encontra nele não apenas um amigo, mas um espelho emocional da sua própria exclusão e desejo de afeto.
Stitch como metáfora da pulsão e do cuidado
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Na visão psicanalítica, Stitch representa um impulso destrutivo bruto, que pouco a pouco se transforma através do afeto e da aceitação. Freud definiu a “pulsão de morte” (Thanatos) como uma força presente em todos os indivíduos, o desejo inconsciente de retorno ao estado inorgânico, muitas vezes expresso em comportamentos autodestrutivos ou agressivos.
No início da narrativa, Stitch é justamente isso: caos, agressividade, rebeldia. Mas à medida que recebe afeto e passa a vivenciar vínculos, ele canaliza essa energia em outra direção. Isso nos remete também à teoria do holding de Donald Winnicott, que defende que o acolhimento emocional consistente pode transformar até mesmo os comportamentos mais desorganizados em formas saudáveis de existir no mundo.
O olhar filosófico: imperfeição, alteridade e liberdade
Filosoficamente, o filme oferece uma potente reflexão sobre alteridade, o reconhecimento do outro em sua diferença. Stitch não tenta se encaixar em padrões humanos. Ele é quem é. E mesmo assim, é aceito. Isso remete à ideia de Martin Buber sobre relações genuínas, do tipo “Eu-Tu”, em que não se exige que o outro se conforme, apenas que exista em presença e reciprocidade.
Para os adultos, Lilo & Stitch relembra que a construção de laços exige disposição para acolher o diferente, conviver com a imperfeição e, principalmente, praticar a escuta, algo que falta entre as irmãs no início e que vai sendo costurado ao longo do filme, com a ajuda do próprio Stitch.
O filme como espelho emocional
Assistir a Lilo & Stitch pode ser, para muitas famílias, uma oportunidade de abrir conversas sobre sentimentos difíceis: saudade, medo de rejeição, vontade de pertencer. E mais do que isso, pode ajudar a mostrar que nenhuma família precisa ser perfeita para ser amorosa.
Em tempos em que o número de famílias reconfiguradas cresce, e em que crianças enfrentam perdas cada vez mais cedo (seja por separações, mortes ou mudanças drásticas), histórias como essa servem como pontes simbólicas de empatia e esperança.
No fim das contas, Lilo & Stitch é muito mais do que uma comédia alienígena. É uma narrativa sobre como é possível reconstruir vínculos mesmo a partir da dor. E mostra como o amor, mesmo entre os seres mais improváveis, costura pedaços soltos e cria algo novo, verdadeiro e duradouro.
Como bem disse o filósofo Nietzsche, “aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal”. Stitch, ao escolher amar, transcende sua própria criação.