Entrevista com Marcela Miranda: os e-sports no Brasil

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Conversamos com Marcela Miranda, co-fundadora da G4B, primeira empresa brasileira especializada em negócios para o e-sports, sobre a situação dos esportes eletrônicos no nosso país

Autor Bruno Uesso
Bruno Uesso

Publicado em 22 de Abril de 2023, às 19h14

FIFA 23(Foto: Reprodução/Xbox Live

No início de 2023 a ministra Ana Moser, recém-empossada na pasta dos esportes, afirmou em entrevista que os esportes eletrônicos fazem parte da indústria do entretenimento e não devem ser comparados aos esportes tradicionais. Na ocasião Moser comparou os ciberatletas com a cantora Ivete Sangalo:

“Eu falei esses dias, assim como a Ivete Sangalo também treina para dar show e ela não é atleta da música. Ela é simplesmente uma artista que trabalha com entretenimento. O jogo eletrônico não é imprevisível. Ele é desenhado por uma programação digital, cibernética. É uma programação, ela é fechada, ela não é aberta, como o esporte”

Entrevista

Após a polêmica gerada entorno desses depoimentos eu conversei sobre o assunto com Marcela Miranda, que é especialista em negócios em games e e-sports.

Geek Ship: É possível ignorar os e-sports enquanto fenômeno social? Caso não seja possível eu entendo que seja necessária alguma atenção pública a eles. Não vindo do Ministério dos Esportes, quais outras vias seriam possíveis?

Marcela Miranda: E-sports nasceu como fenômeno social e vai continuar assim, será imprescindível para que todos os pontos econômicos e políticos evoluam. A atenção pública é necessária para que no Brasil, esse mercado se desenvolva mais rápido, é importante lembrar que isso também traz dinheiro para outros setores como o turismo, por exemplo. Precisamos de visibilidade e isso pode vir de várias áreas: educação, turismo e tecnologia. Pois a ideia não é regulamentar, engessar ou trazer modelos que impeçam o desenvolvimento. Mas é falar com o mercado e acompanhar, entender, buscar oportunidades e possibilidades. Simplesmente alegar que “não é esporte, porque não”, além de não ajudar, atrapalha o desenvolvimento de todo um setor que movimenta bilhões de dólares anualmente, no mundo.

GS: A opinião da Ministra Ana Moser interfere na forma que o mercado consumidor e investidor vê as competições e o potencial dos e-sports no Brasil?

MM: Eu acredito que isso atrase, mas não impeça o crescimento. Fora do Brasil os números de investimentos e audiências são motivadores. No Brasil, o mercado está se desenvolvendo e crescendo de forma modesta, mas ainda assim, crescendo. O próprio mercado, cases e números apresentados já fazem com que o consumidor e os investidores se interessem pelo tema.

GS: Os e-sports são jogos de propriedade de empresas privadas, diferente de modalidades esportivas tradicionais que não possuem donos, esses possuem e geram muito dinheiro para seus quadros societários. Como podemos pensar em investimento público nos esportes eletrônicos sem que essas políticas beneficiem uma ou outra empresa?

MM: Precisamos conversar com todos o ecossistema, os envolvidos e todos que serão impactados. Não dá para investir olhando apenas sob um ângulo, essas empresas precisam estar envolvidas desde o primeiro dia, assim como as organizações, as plataformas de streamer, os investidores, patrocinadores etc.

Todos os players envolvidos precisam se interessar também pelo modelo de negócio, saúde financeira dessas organizações (times!), sobre os atletas, a comunidade, a responsabilidade sobre o marketing também precisam existir, assim como no futebol, por exemplo. Não acredito que exista um modelo pronto e moldado, mas precisamos entender as possibilidades, usar o que já temos como cases e criar novos modelos adequados a essa modalidade.

GS: Como poderíamos pensar em critérios para enquadramentos de determinado jogo no “rol de e-sports”?

MM: Usando os esportes como referências, temos que envolvem carro, corrida, bola, dança, discos, esquis, cavalos, tiros, combate, tacos, no mar, na piscina, no lago, técnicos ou físicos, e mais várias categorias que podemos definir aqui.

Com os jogos de e-sports a ideia é a mesma: selecioná-los, categorizá-los e entender qual jogo tem a melhor experiência, o melhor gráfico, a melhor distribuição, a melhor plataforma, o melhor custo-benefício para que funcione dentro de regras definidas para a competição. Se usarmos os esportes como cases, podemos chegar em modelos bem próximos de campeonatos.

Marcela Miranda, especialista em negócios em Games e eSports. Co-fundadora da G4B, primeira brasileira especializada em negócios para o segmento. Também é fundadora da Seastorm, startup studio, investidora e co-fundadora da fintech Trigg. (Foto: Pessoal)

Marcela Miranda apresenta suas perspectivas sobre as polemicas e o mercado dos e-sports no artigo abaixo:

E-não-sports

Por Marcela Miranda, sócia-fundadora da G4B

Depois de muito pensar, ler, analisar e até digerir um pouco da polêmica sobre os e-sports e os esportes, achei importante trazer algumas perspectivas do tema.

Primeiro, vejo uma questão de postura da ministra Ana Moser. De imediato, ela que recém assumiu um Ministério no âmbito Federal declarou sua posição sobre um ponto o qual não havia – ao que parece – ter discutido a fundo com ninguém que atua no setor. O ponto de vista da ministra é, logicamente, dos esportes tradicionais, por toda sua trajetória, e não pode ser descartado. Mas o cuidado prévio em fazer declarações na imprensa sem antes ter se aprofundado no e-sports não aconteceu. Poderia até ser uma postura de atleta, mas não de uma ministra. Veja, o problema não é discordar, mas Ana Moser não apresentou nenhum argumento sólido, e ainda declarou que não irá investir neste mercado em seu mandato.

Algumas perguntas da jornalista exigiam uma resposta mais aprofundada, já que, por exemplo, uma decisão sobre taxação depende de outras medidas, de entendimento sobre segmentos, modelos de negócios, por isso fica claro que há uma série de respostas que não estão prontas. Mas times, desenvolvedores, atletas, empresas precisam ser ouvidos para entendermos quais os caminhos do e-sports. Até porque esse é um debate antigo e deve ser incentivado junto da ministra e de outros players tanto dos e-sports como dos esportes tradicionais.

Fato é que todo esse discurso da ministra serviu para impulsionar reflexões, trocas e discussões sobre direcionamentos e possíveis caminhos para o e-sports, ou seja, de uma certa forma, colocou em pauta que e-sports ainda é um tema pouco explorado, pouco conhecido e com um mega potencial. Deve ser classificado como esportes? Não sabemos! Mas a discussão precisa ser ampliada e aprofundada nestes níveis de tomadores de decisão e ambientes políticos.

A Lei Geral do Esporte (PLS 68/2017) que está no Senado define, logo no início, como “toda forma de atividade predominantemente física que, de modo informal ou organizado, tenha por objetivo atividades recreativas, a promoção da saúde ou o alto rendimento esportivo”. Então, se o e-sport é um entretenimento, uma atividades recreativas não entraria nesse quesito?

Inclusive, a visão dos e-sports como simples games é um ponto muito importante a ser debatido. Um game qualquer indivíduo pode acessar e jogar, seja no computador, no celular, num console. Mas ser um atleta de e-sports vai muito além, ele vai precisar também seguir uma rotina de dieta específica em pré-temporada, acompanhamento fisioterapêutico e psicológico, e treinar em locais adequados. Por isso, antes de tomar qualquer posicionamento é preciso analisar com calma tudo que envolve a modalidade. Porque a programação até tem limitações, mas nos esportes também existem as regras, que limitam e orientam seus jogadores. Em nenhuma modalidade o atleta pode fazer tudo o que quer.

A discussão se amplia ainda pelo entendimento que a maioria das pessoas e dos políticos têm sobre jogos eletrônicos. A própria fala da ministra sobre serem previsíveis, com uma programação fechada, para diferenciá-los dos esportes tradicionais demonstra uma falta de conhecimento amplo do mercado. Por isso é fundamental dialogar e conhecer a fundo os modelos de negócio existentes, conversar com quem está no dia a dia e na construção desse mercado.

Afinal, a questão fundamental é como se valoriza, incentiva e se cria programas que atendam ao crescimento da categoria, inclusive em relação à relevância social e econômica dos e-sports. Não pensar em incentivos e programas de e-sports em periferias e locais mais afastados, significa reduzir oportunidades em um setor que hoje é responsável pela geração de emprego e renda, pelo desenvolvimento de habilidades tecnológicas e de negócios, além de inclusão social, “criando oportunidades para pessoas com diferentes habilidades e origens”.

Vou mostrar dois exemplos da perspectiva mundial nos e-sports: Os Jogos Asiáticos de 2023 terão competições de League of Legends, DOTA 2, Starcraft 2, Arena of Valor, FIFA 23, Heartstone, PUBG Mobile e Street Fighter V, valendo medalha para o quadro oficial da competição, além de uma semana oficial do COI a ser realizada em Singapura, a fim de promover os esportes eletrônicos dentro do movimento olímpico.

A Dinamarca, graças a um ecossistema favorável e incentivos que vêm sendo feitos desde 2018, os torneios de videogames tornaram-se parte da cultura dominante e são regularmente transmitidos na televisão, tal como qualquer esporte tradicional. Há um enorme interesse por parte das escolas, universidades ou do governo, que encaram os e-sports como uma forma de criar empregos. Na capital do país, Copenhagen, o governo municipal anunciou um investimento de US$ 2 milhões em um centro de e-sports.

Isso não significa que devemos seguir este ou outro modelo, cada país tem suas especificidades, possibilidades, projetos. Mas é preciso, sim, estar atentos às oportunidades que os e-sports podem oferecer e, fundamentalmente, ampliar o debate para que tenhamos melhores definições e não deixemos de investir no que é altamente promissor, seja social ou economicamente, baseados somente em uma visão unilateral da realidade.