Crítica: Flow traz uma reflexão sobre a efemeridade

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Em Flow (2024), a animação letã dirigida por Gints Zilbalodis nos leva a uma jornada silenciosa e visualmente impressionante. Leia a crítica

Autor Gabriel Barbosa
Gabriel Barbosa

Publicado em 28 de Março de 2025, às 00h36

Crítica FlowCrítica: Flow. Foto: Divulgação

Flow, animação letã dirigida por Gints Zilbalodis, se insere no contexto de Tales de Mileto. Foi ele que apontou a água como um poder simbólico.

Com isso, a obra que, embora visualmente deslumbrante, é mais do que um simples exercício estético.

Ou seja, trata-se de uma meditação sobre o eterno fluir da existência, onde a água se torna uma metáfora para o movimento constante das forças naturais e humanas.

Protagonista de Flow

A narrativa de “Flow” se desvia das convenções narrativas tradicionais ao adotar uma abordagem silenciosa, sem diálogos. Aqui, o protagonista – um gato preto que sobrevive a uma cataclísmica enchente – se vê forçado a adaptar-se a um novo mundo. Esse lugar é repleto de criaturas inusitadas, com as quais precisa estabelecer relações de sobrevivência e, mais que isso, de transformação.

No cenário pós-apocalíptico, onde a humanidade parece ter desaparecido, o filme explora com precisão técnica impressionante. O uso do software de animação Blender contribui para uma estética rústica, mas eficaz, transmitindo profundamente a sensibilidade da obra.

Ao longo do filme, a ausência de antropomorfismo se destaca como uma escolha estilística acertada. Os animais interagem em situações de grande carga emocional sem serem despersonalizados com expressões humanas forçadas. Em vez disso, suas ações carregam um sentido profundo, revelando uma relação mais genuína e instintiva com o mundo ao seu redor.

Essa decisão não apenas reforça a conexão com a natureza, mas também sublinha a ideia de que a sobrevivência no novo mundo não é apenas física. Ela é também uma jornada simbólica de autodescoberta.

A reflexão sobre transitoriedade

Os momentos em que o gato interage com seus companheiros de jornada – uma capivara, um lêmure e outros animais – são um convite para a reflexão sobre a transitoriedade das relações e a importância da adaptação.

Personagens de Flow. Foto: Divulgação

Aliás, é interessante como Zilbalodis opta por não humanizar os personagens, mas sim por mostrar sua luta por sobrevivência e seus processos de transformação. Nesse sentido, a animação não se limita a um conto sobre a vida animal. Ela na verdade se amplia para um questionamento universal sobre a permanência e a impermanência.

Estética de Flow

A estética visual de “Flow” é, sem dúvida, uma das suas maiores virtudes. Os cenários são extraordinariamente ricos, mas o que realmente impressiona é a maneira como Zilbalodis lida com a luz e as sombras, e como isso se aplica ao movimento da água. A equipe planeja meticulosamente cada cena para capturar a transitoriedade do momento, equilibrando constantemente a calma da superfície com a violência das correntes subjacentes.

A água, como elemento que tudo move, nunca é simplesmente um pano de fundo, mas se torna a força motriz da narrativa, que nos conduz por uma jornada de resiliência e adaptação.

Personagens de Flow

Há também uma forte carga simbólica na forma como os personagens interagem com o mundo, uma leitura que remete à dualidade da existência: enquanto para algumas criaturas a inundação é uma oportunidade de transformação, para outras é uma ameaça que coloca tudo em risco. A sobrevida de um mundo que se modifica constantemente é um tema recorrente no filme, e a animação lida com ele de maneira orgânica, sem apelar para soluções fáceis. A chegada da baleia, que se manifesta de formas diferentes ao longo da história, serve como um poderoso símbolo de ciclos e renascimentos, uma representação clara de que, para que algo novo surja, algo do velho deve sucumbir.

Roteiro de Flow

A simplicidade do roteiro não diminui o impacto da obra. Pelo contrário, a ausência de diálogos apenas reforça a profundidade da experiência visual e emocional. Zilbalodis constrói uma atmosfera que, ao mesmo tempo, é poética e melancólica, sem cair no sentimentalismo fácil que muitas produções contemporâneas adotam. A animação, com seus 80 minutos de duração, se torna uma verdadeira experiência sensorial, onde cada cena é uma meditação sobre a fragilidade e a beleza da vida.

Por fim, “Flow” é uma obra-prima que vai além do que se espera de uma animação contemporânea. Com sua abordagem única e sensível, ela oferece uma reflexão sobre os ciclos da vida, a necessidade de adaptação diante das mudanças e, principalmente, sobre a inevitabilidade da transformação. Ao explorar o simbolismo da água e da transitoriedade, o filme nos lembra que, apesar de todas as dificuldades que enfrentamos, a mudança é uma constante necessária para que a vida siga seu curso. Assim como a água, que flui incessantemente, nossa jornada também é marcada por fluidez, incerteza e renovação.

“Flow” é mais do que uma animação; é uma experiência filosófica e sensorial que captura a essência da vida em movimento, com uma profundidade rara para uma produção dessa natureza. Sem dúvida, uma das maiores conquistas do cinema de animação contemporâneo.